FONTE: Serviço Florestal Brasileiro. ARTE: MINISTÉRIO DOMEIO AMBIENTE REPRODUZIDA POR KIMBERLY WINHESKI |
Definir as dimensões do Brasil como continentais está longe de ser considerado um exagero. São mais de 8,5 milhões de quilômetros quadrados. Para se ter uma ideia, a Europa, mesmo composta por 48 nações, tem uma área pouco maior, na casa dos 10 milhões de quilômetros quadrados. O mapeamento da extensão territorial é tarefa relativamente fácil em pleno século XXI. Por outro lado, mesmo com tecnologias de imagens via satélite, identificar infhhhormações ambientais precisas ainda é uma tarefa hercúlea para um país tão grande quanto o Brasil.
Além do tamanho, há outros empecilhos, como a dificuldade de acesso a determinadas regiões e o fato de a ação humana estar constantemente transformando paisagens e seus usos. O Cadastro Ambiental Rural (CAR) assume, ao menos em parte, esse desafio. O objetivo institucional é integrar as informações referentes à situação das Áreas de Preservação Permanente (APP), de reserva legal, das florestas e dos remanescentes de vegetação nativa. Ou seja, na prática, construir uma base de dados composta por toda a malha de imóveis rurais e suas principais características ambientais.
Por isso, todos os proprietários são obrigados a realizar o cadastramento. O processo é semelhante a uma declaração do Imposto de Renda, realizado de forma on-line. Basicamente, o produtor precisa baixar o módulo de cadastro do site car.gov.br e detalhar, por meio de imagens de georreferenciamento, a extensão de cada uma das áreas - APP, reserva legal etc - da sua propriedade. O prazo foi ampliado, recentemente, em mais um ano, uma vez que entraves impediam o avanço em alguns estados. Quem não o fizer até maio de 2016, não poderá, por exemplo, obter crédito agrícola nem licenciamentos.
Uma tarefa de grandes proporções se reflete, consequentemente, em um potencial de importância semelhante. Por isso, uma vez finalizado, o CAR se tornará elemento central da nova política brasileira para o setor, baseada no Código Florestal aprovado em maio de 2012, no Congresso Nacional. O cadastro será a fonte estratégica governamental para a tomada de decisões ligadas ao monitoramento e combate ao desmatamento, assim como o planejamento ambiental e econômico das propriedades agrícolas. A partir dos dados, também será possível fazer estimativas mais precisas de área plantada e produção durante as safras.
"As políticas públicas do campo no Brasil são feitas com base em estimativas", explica o diretor sênior de Política e Estratégia Institucional da Conservação Internacional (CI-Brasil), Cristiano Vilardo. Atualmente, o governo utiliza como referência o Censo Agropecuário, realizado pelo IBGE. Entretanto, segundo Vilardo, a pesquisa não é pensada para tal fim e utiliza um conceito de estabelecimento agropecuário diferente do proposto pelo CAR. "Ninguém sabe o total de hectares que temos em propriedades privadas no meio rural", ressalta.
Apenas no primeiro ano de coleta, foi identificada, por exemplo, uma área de remanescentes florestais do tamanho da Colômbia. Ainda que, de acordo com o último balanço, divulgado no início de julho, cerca de 56% da área passível de cadastramento, estimada em 397 milhões de hectares, tenha entrado no sistema. "O governo, durante muito tempo estimula e acompanha a proteção de florestas públicas. Agora, teremos uma clareza muito maior do potencial de florestas em áreas privadas que desempenham um papel fundamental na conservação de nossos ecossistemas", completa o diretor do Serviço Florestal Brasileiro, Raimundo Deusdará. Caberá ao CAR ser um retrato mais fiel desse Brasil rural.
Rio Grande do Sul tem dificuldade para avançar na catalogação de dados
No Rio Grande do Sul, o avanço do cadastramento ficou emperrado por mais de um ano. Até junho, os gaúchos documentaram 414,9 mil hectares, ou seja, apenas 2,04% de um total passível de mais de 20 milhões de hectares. A morosidade observada até então pode ser explicada por duas incongruências entre o novo registro junto ao Ministério da Agricultura e Abastecimento e o que está disposto na legislação estadual. Em primeiro lugar, a lei gaúcha prevê espaços de banhado como Área de Preservação Permanente (APP). Os produtores deveriam, portanto, informar a presença desses espaços em seus domínios. Por outro lado, as regras não previam uma definição de banhado, o que gerava insegurança durante a catalogação dos dados.
Outra característica ambiental tampouco estava contemplada no CAR: o Bioma Pampa. Apesar de a maioria dos imóveis rurais estarem situados em regiões de Mata Atlântica, o Pampa ocupa 67% do território gaúcho e possui características ecológicas bem específicas. Além disso, a legislação federal considera como consolidada toda extensão onde houve ocupação humana ou atividade agrosilvopastoril. As zonas de pecuária, inclusive a tradicional em campo nativo, se encaixam nesse dispositivo e passam a ter um tratamento específico de proteção ambiental. Mas, ao mesmo tempo, a legislação exige a identificação de territórios remanescentes de vegetação nativa.
Na visão de entidades produtivas, estava posta a controvérsia, uma vez que o decreto presidencial leva em conta a classificação de vegetações nativas que existem apenas na Mata Atlântica, e não considera outros biomas. "Ficamos na dúvida se o que temos como campo nativo também seria considerado como vegetação nativa no CAR", argumenta o assessor de Desenvolvimento Sustentável da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul), Eduardo Condorelli. Para ele, surgia aí a dificuldade. "Se é área rural consolidada, como pode ser vegetação nativa ao mesmo tempo?", questiona. Por isso, os produtores rurais gaúchos foram orientados a aguardar uma definição do governo sobre o assunto antes de efetivarem seu cadastro.
A resposta chegou em junho, quando restavam cerca de 11 meses para o fim do prazo. O governador José Ivo Sartori e a ministra da Agricultura, Kátia Abreu, assinaram um decreto instituindo um código de referência. Pelo texto, fica entendido que os campos de pecuária são áreas consolidadas. Cria-se, dessa maneira, uma especificidade na declaração estadual. O Bioma Pampa passa a ter dois tipos de área rural consolidada: aquelas forjadas pela conversão do solo, ou seja, introdução de lavoura, e as constituídas pela atividade pastoril. A declaração em separado deve destravar o processo, mas ainda gera polêmica quanto aos mecanismos de proteção ambiental do Pampa.
Para ecologistas, decreto estadual atrapalha conservação do Pampa
O documento assinado pelo governador José Ivo Sartori, que instituiu um código de referência, é alvo de crítica de ecologistas responsáveis pelo livro Campos Sulinos, publicação que agrega o conhecimento científico existente sobre a região. Os pesquisadores consideram o decreto uma forma de permitir a expansão da fronteira agrícola na região do Bioma Pampa. "O texto saiu nesse formato para liquidar com a obrigação de Reserva Legal no Pampa", defende o pós-doutorando em Ecologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) Eduardo Vélez.
No fim da semana passada, o Ministério Público ingressou com uma ação civil pública contra o Estado do Rio Grande do Sul com o objetivo de assegurar a proteção jurídica do Bioma Pampa. O conflito envolve uma série de conceitos - principalmente, os de Reserva Legal, Área de Preservação Permanente (APP) e Área Consolidada - e sucessivas alterações nas leis de proteção ambiental. Os agricultores precisam delimitar 20% de Reserva Legal, espaço onde é necessário manter a vegetação nativa. O segundo desconto na área de produção intensiva pode se dar por uma APP - encostas de grande declividade, faixas próximas a arroios etc - caso exista uma dessas características na propriedade. Com o novo Código Florestal, foi criado também o conceito de Área Consolidada, com objetivo de isentar sistemas produtivos estabelecidos há décadas, em que a aplicação dos critérios de APP causariam transtornos econômicos. Nesses locais, se houve supressão da vegetação nativa até julho de 2008, tornam-se Áreas Consolidadas.
Poderia ser o caso da pecuária no Pampa, assim como estabelece o decreto. Acontece que, segundo os biólogos, não houve supressão da vegetação nativa nessa região. "É possível dizer que houve modificação da estrutura pela presença do gado, mas as espécies são as mesmas", explica Vélez. Segundo o pesquisador, o objetivo é enquadrar o Bioma nos artigos 67 e 68 da lei, aqueles que apontam exceções para a necessidade de presença de Reserva Legal. "O decreto é contraditório ao afirmar que áreas com ocupação pastoril em que se manteve parte da vegetação nativa são consolidadas por supressão da vegetação nativa", reclama.
Para a comunidade científica, a agricultura não pode ser a atividade majoritária no Pampa. A pecuária, por outro lado, é vista como opção sustentável para esse tipo de biodiversidade, pois consegue manter espécies de plantas, mamíferos, aves e repteis. Além disso, especialistas alertam que a expansão das lavouras poderia, por exemplo, provocar aumento das emissões de carbono e colocaria em risco diversas espécies de animais nativos, como o lobo-guará.
Regularização Ambiental deve ajudar a promover rearranjo produtivo
Se os esforços para realizar o cadastramento de todos os imóveis rurais é do tamanho do Brasil, a tarefa não termina nesse ponto. Em seguida, cada estado será responsável por construir seu Programa de Regularização Ambiental (PRA). Levando em conta a especificidade de cada bioma, os PRAs devem orientar o produtor sobre como será realizada a recomposição, caso essa seja necessária. Caberá aos órgãos estaduais o apoio técnico e a facilitação do crédito para que a atividade de restauração seja feita, além da definição de sanções para quem não cumprir os termos de compromisso.
No último levantamento do Serviço Florestal Brasileiro, Paraná, São Paulo, Rondônia e Bahia apresentaram seus PRAs, mas apenas o governo baiano detalhou as regras a ponto de permitir que o produtor partisse para a recomposição imediatamente. Antes, parte das informações prestadas no CAR precisam ser verificadas. O próprio sistema faz uma triagem inicial, indicando, por exemplo, quando há duas propriedades sobrepostas. Entretanto, uma espécie de checagem de campo, outra atribuição estadual, será feita em casos de inconformidade.
O PRA será construído a partir de outro ato normativo, como aconteceu com o decreto do CAR, no qual as especificidades do ambiente gaúcho serão contempladas. Para casos de checagem de informações, o governo conta com uma equipe com profissionais das secretarias do Meio Ambiente e da Agricultura, que pode necessitar de ajustes e reforços, de acordo com a secretária adjunta de Meio Ambiente, Mara Patrícia Möllmann. "Entretanto, teremos uma visão do todo, que facilitará o planejamento e a antevisão das consequências das atividades e empreendimentos, podendo tornar mais simples a concessão de licenças e autorizações", completa.
A expectativa é que os Programas de Regularização Ambiental provoquem um rearranjo produtivo em propriedades com débito ambiental, uma vez que o agricultor perceberá se está fazendo bom ou mau uso dos recursos. "Com a recuperação dos passivos, melhora todo o sistema de produção: vai ter mais água disponível, mais insetos predadores e uma paisagem cênica", explica o assistente técnico do Núcleo de Produção Vegetal da Emater, Dirceu Slongo. Enquanto isso, a exploração para plantio vai acontecer em áreas mais recomendadas por conta de diversos fatores, como o relevo.
Em uma escala maior, municípios, estados e governo federal terão melhores condições de visualizar suas bacias hidrográficas e locais de vegetação nativa. Desse diagnóstico mais amplo, podem emanar políticas de gestão territorial, de abastecimento de água em grandes cidades e de manutenção do solo para evitar assoreamento dos rios. "O cadastro vai ser fundamental para guiar e delinear como serão feitos esses esforços de recuperação de florestas por meio dos PRAs, para que possamos recompor a provisão desses recursos ambientais", destaca o diretor sênior de Política e Estratégia Institucional da Conservação Internacional (CI-Brasil), Cristiano Vilardo.
Fonte: Jornal do Comércio
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