Artigo escrito por Felipe Bottini
As alterações climáticas são tema frequente de discussão com característica jornalística sazonal. Ao fim de cada ano ocorrem as COPs - Conferência das Partes que acabam por ser ponto de checagem da opinião pública dos avanços - ou não - das políticas e práticas internacionais de mitigação e adaptação às alterações globais do clima.
O enfoque recorrente é olhar em termos científicos o aumento do hiato de emissões desejadas e verificadas ao fim de cada período, culpar uma ação ou outra pela inoperância dos tratados vigentes e aguardar a próxima rodada onde novamente serão apresentados o teto de emissões globais, a escala de responsabilidade de cada nação, a contribuição que cada país está disposto a fazer e sob quais contrapartidas, o não sucesso das ferramentas de mercado de carbono para mitigação, e por aí vai. Essa é a tônica do debate nos meios especializado e não especializado.
O limite de emissões anuais para o século é da ordem de 18 GT de CO2e ano a ano... O caminho definido para chegar lá requer, de forma científica razoável, que não passemos de 44 GT até 2020. Mas, a tendência aponta para 58 GT. Essa análise matemática traz embutida uma evidência de fracasso, mas qual é realmente o problema que vai surgir do aquecimento global, para além desse hiato aritmético ou do desconforto de ter verões 2 ou 3 graus mais quentes?
Acontece que o aumento de mais de 2 graus de temperatura, além de um superável desconforto humano, vai causar mudanças nos regimes de chuvas, impactando a agricultura e a segurança alimentar no planeta. Mais, o aumento dos níveis dos oceanos vai gerar impactos fundiários nas cidades costeiras (segundo a ONU 2/3 da população do mundo vive a menos que 50 km da costa). Aliado a isso, o aumento de intensidade e frequência de eventos extremos como cheias e secas vai aumentar, sobretudo na África a incidência de doenças como a malária e outras que se proliferam a partir da falta de estrutura de saneamento e de meios de adaptação.
À medida que as condições humanas ficam dificultadas espera-se movimentos de êxodo para as regiões menos atingidas - ou melhor preparadas - para se adaptar às alterações climáticas. Ou seja, as regiões que menos sofrerem o impacto direto das alterações climáticas, sofrerão com o êxodo, sobrecarregando os serviços públicos, a urbanização descontrolada, com implicação séria nas capacidades de assegurar emprego, moradia, saúde, saneamento, educação e segurança pública nesses centros.
Defere-se dessa discussão que o aumento de temperaturas é o menor problema do aquecimento global. Gostemos ou não, acreditemos ou não, estamos todos no clima, e ele não é favorável a ninguém. Como é que vamos resolver isso? Plantando árvores e dizendo que estamos fazendo nossa parte? Fazer a nossa parte implica em acolher migrantes do clima, que implica em rediscutir o modelo socioeconômico capitalista global. A OIM - Organização Internacional para as Migrações - estima que até 2050 haverá 1 bilhão de pessoas forçadas a migrar como resultado de alterações climáticas. Isso representa nada menos que 1 a cada 7 habitantes do globo.
Um paralelo é útil para entender a que dimensão de conflito social podemos chegar. O conflito israelo-palestino é resultado de um processo histórico em que aproximadamente 80 mil judeus migraram a uma região em que viviam aproximadamente 350 mil árabes, tal que no todo não havia mais do que 500 mil pessoas a disputar um espaço territorial. Hoje a população dessa região é superior a 7 milhões de pessoas e não há solução tácita ou explícita que nos permita acreditar no fim próximo desse conflito.
Multiplique-se as pessoas disputando o território por 2 mil e teremos a dimensão do problema do êxodo climático. Se nada for feito é certo que será o fim da organização político-territorial que hoje conhecemos. Evidente que com maior prejuízo às populações mais pobres, mas nessa matriz não há ganhadores.
Imagine-se o que pode acontecer com 1 bilhão de pessoas procurando se estabelecer em diversos pontos do mundo ao mesmo tempo! Como alimentar essas pessoas? Como incorporá-las às economias e aos serviços sociais? Serão tratados nos países desenvolvidos como estrangeiros que não tem acesso aos serviços públicos? Serão rejeitados? Evidente que medidas de proteção irão surgir, mas sob um expediente de ilegitimidade completo já que a origem da migração que se inicia é responsabilidade de todos.
Assim, não há como se isentar, de uma forma ou de outra. Todos vão sentir os impactos do aquecimento global na sua face mais perigosa e menos enfatizada do momento, que é a questão social do clima.
Enquanto tratarmos aquilo que é de todos como não sendo de ninguém, ou seja, enquanto não pudermos dar sentido e amplitude global ao sentido da cidadania onde o bem comum é de todos e por todos zelado - e os países mais desenvolvidos tem nos decepcionado sobremaneira em exportar a anticidadania ao passo que internamente se modernizam na cidadania - não estaremos preparados para enfrentar um problema tão grave e complexo. As ferramentas científicas são o aspecto menos importante.
Desejo ver, rapidamente, e espero estar contribuindo nesse sentido para o debate mudar de foco e colocar como centro das discussões do aquecimento global o papel da ONU, o planejamento da organização socioeconômica global e a segurança climática em termos mensuráveis, tal que a questão científica deixe de ser o foco político e volte a ser ferramenta para o planejamento.
Felipe Bottini é economista pela USP com especialização em Sustentabilidade por Harvard. Fundador da (www.greendomus.com.br) e da (www.neutralizecarbono.com.br) e Consultor especial do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD.
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