Marina Schmidt
Jornal do Comercio RS
Foto: JC RS |
Há três anos, quando foi deflagrada a primeira Operação Leite
Compensado para combater fraudes na atividade leiteira do Rio Grande do
Sul, era difícil prever os rumos que as investigações tomariam. Hoje, os
indícios são de que as ilegalidades vêm sendo praticadas há décadas,
graças a uma relação corrompida entre empresas do setor e responsáveis
pela fiscalização federal. É o que o aponta uma ação movida pelo
Ministério Público Federal (MPF), obtida com exclusividade pela
reportagem do Jornal do Comércio.
A denúncia foi apresentada à Justiça Federal em março e implica
dois servidores públicos vinculados ao Ministério da Agricultura (Mapa) -
o fiscal federal agropecuário aposentado Paulo Régis Motta e o agente
de fiscalização Jorge Luiz Pinto Soares - além de quatro pessoas
envolvidas na administração e operações da Hollmann Laticínios: o
representante comercial Carlos Alberto Seewald, o consultor empresarial
Mario Stockmann, o empresário Eduardo Fuhr e o empresário e técnico
químico Sérgio Alberto Seewald. Os crimes citados são corrupção ativa e
passiva, associação criminosa e violação de sigilo profissional.
A participação de Motta e Soares em supostas atitudes que
favoreciam empresas da região do Vale do Taquari foi constatada pelo
Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS) durante a 5ª Operação
Leite Compensado, a primeira investigação do tipo a identificar o
envolvimento direto de empresários do ramo nas fraudes. Até então, entre
maio de 2013 e maio de 2014, transportadores e responsáveis por postos
de resfriamento é que figuravam como principais acusados pelas
adulterações no leite - fato que, inclusive, sustentou muitas vezes os
argumentos, por parte de empresários, de que as indústrias seriam tão
vítimas das adulterações quanto os consumidores.
Essa justificativa foi perdendo força com o avanço das operações e
das suspeitas de envolvimento ilícito entre responsáveis pela
fiscalização e executivos do setor, levando o MP-RS a encaminhar os
indícios à Polícia Federal (PF). Com a realização da Operação Pasteur
por parte da PF, as primeiras informações sobre o recebimento de
propinas pelo serviço de fiscalização do Mapa foram divulgadas à
imprensa, reportando que o crime envolvia, inicialmente, um fiscal
federal agropecuário (Motta) e quatro agentes de inspeção (entre eles,
Soares), suspeitos de ganhos ilícitos para beneficiar cerca de seis
empresas da região do Vale do Taquari.
No decorrer dos últimos três anos, o MP-RS realizou 10 operações
para investigar adulterações no leite e outras duas voltadas às fraudes
na produção de queijos. Os promotores que têm se dedicado às
investigações, Alcindo Luz Bastos da Silva Filho e Mauro Rockenbach,
frisam, recorrentemente, que o apoio recebido dos servidores da
fiscalização do Mapa tem feito esse trabalho avançar, demonstrando que a
prática de corrupção se restringe ao grupo investigado.
Fiscal do Ministério da Agricultura recebia suborno dentro do Serviço de Inspeção Federal de empresa
A denúncia do MPF dá ênfase à atuação de Paulo Régis Motta, que
era o chefe dos fiscais do Mapa e o encarregado da fiscalização
regional das empresas comercializadoras de produtos de origem animal.
"Nesta condição, recebeu o pagamento de vantagem ilícita entre os anos
de 2011 e 2013, na sede da empresa Hollmann Laticínios Indústria e
Comércio Ltda." O valor médio recebido mensalmente seria de R$ 5 mil.
Amparado pela Lei de Proteção a Vítimas, Testemunhas e Réus
Colaboradores, Motta admitiu nos autos da denúncia o recebimento ilícito
de valores "para não criar problemas para a empresa (Hollmann)".
Afirmou, ainda, que retribuía os pagamentos "escolhendo" entre as
amostras de produtos para análise aquelas que estivessem em melhor
apresentação. A propina também era paga em locais combinados, inclusive
na sala do fiscal no Serviço de Inspeção Federal (SIF) instalado na BRF
Foods, onde o denunciado exigia o ingresso dos executivos da Hollmann
sem que estivessem portando celular, de acordo com revelações de Carlos
Alberto Seewald. A denúncia insere a conduta do servidor nos crimes de
corrupção passiva e associação criminosa, tipificando-os como crimes
continuados.
Instalada em Imigrante, a Hollmann foi adquirida por Sérgio Alberto
Seewald e Mario Stockmann em março de 2011, posteriormente, a sociedade
se desfez, e, no início de 2012, Eduardo Fuhr assumiu a posição de
sócio de Sérgio Seewald. Entre os executivos da empresa que foram
denunciados aparece, ainda, Carlos Alberto Seewald, filho de Sérgio
Seewald, e responsável por uma série de atribuições junto à Hollmann. Os
quatro confirmaram pagamentos à Motta e incorreram, segundo a denúncia,
nos crimes de corrupção ativa e associação criminosa, classificados
como práticas criminais continuadas.
Trechos do interrogatório de Sérgio Seewald estão entre os mais
reveladores da relação entre a empresa e o fiscal. Segundo ele, desde o
início das atividades no laticínio Motta exigiu o pagamento de R$ 5 mil
mensais para "não trancar as ações da empresa". Na escrituração contábil
da organização, a propina entrava como "pagamentos diversos". O
denunciado também refere que, enquanto pagou valores ilícitos ao fiscal,
nunca enfrentou "qualquer problema com a fiscalização".
Porém, em meados de 2013, "quando a empresa se encontrava
rigorosamente dentro dos padrões", decidiu interromper os pagamentos e
começou a enfrentar problemas com o serviço de fiscalização. Entre as
dificuldades, o relato exemplifica que "solicitações de aprovações de
novos rótulos ficavam trancadas na mesa do fiscal, a aprovação do
projeto de implementação de uma linha de leite UHT levou quase um ano",
além de outros fatos pontuais que determinaram a cessação de produtos da
empresa no mercado devido às exigências recrudescidas.
O empresário elenca, ainda, outras situações que prejudicaram as
operações da empresa em função da atitude de Motta, relatando que as
amostras para fiscalização passaram a ser colhidas por uma auxiliar do
fiscal, "de nome Priscila, que era cedida pela empresa BRF Foods ao
SIF", sem conhecimento técnico exigido para a função, de modo que "a
própria coleta já era realizada de forma errada, o que influenciava no
resultado da amostra". Em função disso, "a Hollmann foi mantida pelo
período de um mês no regime especial de fiscalização com suspensão da
produção de ricota".
Fuhr confirmou que Sérgio Seewald determinou o encerramento do
pagamento de propina quando a "Hollmann estava nas especificações
técnicas previstas, e, portanto, não tinha motivos para ser autuada pelo
fiscal".
A denúncia do agente de fiscalização Jorge Luiz Pinto Soares refere
que o servidor teria quebrado o sigilo profissional ao informar Carlos
Alberto Seewald sobre a deflagração da 5ª Operação Leite Compensado, em
maio de 2014.
Por meio de nota, a BRF afirma desconhecer o processo, porém
"informa que não compactua com o tipo de conduta que está sendo
investigada, e que está à disposição para colaborar com as autoridades
na investigação do caso". A companhia ressalta ainda que "tem como
princípio fundamental o respeito à lei e segue rígido código de
conformidade a normas regulamentares, primando sempre pela ética e boas
práticas corporativas".
Testemunhas e envolvidos acusam irregularidades em outras indústrias
A sustentação do Ministério Público Federal (MPF) na
apresentação da denúncia contra os dois servidores federais e os quatro
representantes da Hollmann Laticínios revela que a corrupção era uma
prática sistemática na atividade leiteira da região. "Considerando o
extenso rol de indivíduos e empresas envolvidos nos delitos, a
autoridade policial postulou autorização para compartilhamento de provas
e instauração de inquéritos policiais para cada empresa", registra o
documento.
O procurador do MPF Cláudio Terre do Amaral, que assina a denúncia,
confirma que a vara tem mais dois processos em andamento (tramitando em
segredo de Justiça), além de mais investigações que estão em curso e
podem gerar futuras denúncias a serem apresentadas pelo órgão. Fato é
que a primeira denúncia apresentada pelo MPF é reveladora sobre uma
prática que, segundo consta no documento e nas declarações dos
interrogados e testemunhas, atinge um grande contingente de empresas,
principalmente do Vale do Taquari.
Um dos trechos do interrogatório de Sérgio Alberto Seewald (da
Hollmann), que consta no documento, cita que "o declarante tem
conhecimento de que outras empresas faziam pagamentos a Paulo Motta",
nominando "Dália, Pavlat, Languiru, BRF e todas as cooperativas que
atuam na região".
O processo também cita que a servidora do Mapa Milene Cristine Cé,
atualmente responsável técnica pela inspeção do leite em todo o Rio
Grande do Sul, foi procurada por uma pessoa que atua no ramo para
registro de uma denúncia sob condição de anonimato, descrevendo que
várias empresas do segmento estariam sofrendo pressão para efetuarem
pagamentos ilícitos a um fiscal e três agentes de fiscalização. Destes,
foram denunciados Paulo Motta e Jorge Soares, até o momento.
Ainda segundo esse denunciante, o grupo de servidores pressionava
as empresas ao dificultar a expedição de Guia de Trânsito, necessária
para transporte dos produtos, e que, em caso de demora, poderia levar à
perda do material.
Outra prática seria a de lavrar Autos de Infração quando a situação
ensejasse apenas a emissão do Relatório de Não Conformidade (RNC), que
não gera multa (apenas obriga as empresas a realização de ações
corretivas). Segundo ele, estão entre as empresas pressionadas Hollmann,
Languiru, LBR (Bom Gosto), Lativale (Tangará) e Pavlat (Inovare).
Acrescenta, ainda, que "o esquema de corrupção está há muito tempo em
vigor na região de Lajeado e que é de conhecimento geral".
Prática envolvia adulteração de amostras da contraprova por produtos em boas condições
Além da coação às empresas, denúncia anônima que consta no
processo acusa que os servidores do Mapa "trocavam amostras de
contraprova quando era constatada alguma irregularidade no produto, ou
seja, permitiam que a empresa falsificasse a amostra da contraprova,
adulterando o seu conteúdo (trocando por produto em boas condições)". O
efeito dessa prática é que, dessa forma, "a empresa não era autuada, e o
produto seguia na cadeia, independentemente de suas condições".
Outra
testemunha ouvida, a companheira de Sérgio Seewald, Alaete Girardi,
cita que "todas as empresas que atuam no segmento do leite têm
conhecimento de que Paulo Motta recebe pagamento dos empresários" e que o
pagamento ao fiscal ocorria há bastante tempo, sendo que "todas as
empresas fiscalizadas o faziam".
No processo, constam três
testemunhas, a terceira é Ércio Vanor Klein, que foi consultor da
Hollmann entre 2007 e 2008 (quando a empresa era presidida por Délio
Eduardo Hollmann, fundador do laticínio). Com uma trajetória que remonta
ao início dos anos 1990 no segmento, Klein expõe que a relação
corrompida entre empresas e fiscais já soma mais de duas décadas ao
afirmar que ingressou no ramo leiteiro em 1993, como analista de
laboratório, responsável por controlar a qualidade dos produtos lácteos
da empresa CCGL. "Assim que ingressou na CCGL, lhe foi explicado que
tais profissionais eram remunerados com uma 'ajuda financeira', como se
fosse algo convencional", segundo o documento. Diferentemente das demais
empresas citadas em trecho da denúncia, a CCGL não opera na região de
Lajeado. Sua sede, onde está instalada a fábrica, fica em Cruz Alta, no
Noroeste do Estado, frisa a empresa. Em posicionamento enviado ao Jornal
do Comércio, acrescenta que o laticínio "teve início no ano de 2008".
Procurada
pela reportagem, a Dália Alimentos alegou não ter conhecimento dos
elementos do processo, destacando que não consta como parte na ação, "de
modo que sua manifestação sobre o assunto é limitada". A empresa, no
entanto, afirma que a acusação "é infundada e fruto de um momento
infeliz do declarante e só encontra motivos em face de eventual objetivo
escuso do autor, atitude que repudiamos". Acrescenta ainda que, "em
toda a sua história, pauta sua conduta dentro dos estritos limites da
legalidade e da boa-fé, mantendo-se afastada de qualquer ato e pessoas
que importe em transgressão aos ditames legais".
A LBR diz não
ter conhecimento dos fatos e do processo, "mas, oportunamente,
esclarece que sempre pautou sua gestão e relação junto aos agentes
públicos e privados, com quem se relaciona ou relacionou, dentro da mais
absoluta legalidade e observando os princípios da transparência e da
ética em sua conduta". A reportagem não conseguiu contato com as
empresas Hollmann e Pavlat. A Languiru e a Lativale não responderam à
solicitação de posicionamento até o fechamento da edição.
Os
advogados dos réus ainda não constam nos autos da ação, pois a
tramitação do processo está na fase de pronunciamento dos acusados. A
reportagem não conseguiu contato com os denunciados até a publicação.
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